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A gaguez atrapalhou-lhe a infância, mas aprendeu a falar com ela e a viver com ela. A primeira mulher e a filha morreram num acidente de carro nas vésperas de Natal, quase que desistiu, mas seguiu em frente. Em 2015, viu morrer o filho mais velho com um tumor cerebral. Tenaz, persistente, aos 77 anos Joe Biden foi eleito o 46ª Presidente dos Estados Unidos depois de um aneurisma o ter afastado da corrida presidencial em que George Bush foi eleito. Nunca desistiu e seguiu o ensinamento do pai: “Não importa quantas vezes um homem cai, mas a rapidez com que se levanta”
Só se entende a persistência de Biden candidato presidencial pelo Partido Democrata, quando se olha para a vida (pessoal) de Joe, para as perdas e contratempos que lhe atrapalharam os planos políticos, os afetos e a própria forma de falar.
Catorze anos depois de ter sido eleito senador pela primeira vez (em 1973), Joe Biden decidiu entrar nas primárias para ser o candidato presidencial do Partido Democrata no ano seguinte. As dores de cabeça levaram-no à desistência – foi-lhe diagnosticado um aneurisma que o conduziu à mesa de operações – e, foi Michael Dukakis quem disputou as eleições de 8 de novembro de 1988, contra o candidato do partido Republicano, George Bush, que saiu vencedor.
Bush pai cumpriu (apenas) um mandato presidencial, sucedeu-lhe Bill Clinton (dois mandatos) e, no ano 2000, seria eleito George W. Bush naquela que foi uma das mais renhidas eleições até agora.
Sete anos mais tarde e dois mandatos de Bush filho depois, Biden anunciou a intenção de disputar o lugar de candidato pelo Partido Democrata às eleições do ano seguinte. Fê-lo no programa “Meet the Press” mas o sonho de ser Presidente foi mais uma vez por água abaixo. Nada de dramático na sua vida pessoal desta vez, mas o seu velho estilo de fazer política chocou com a pujança do ‘opositor’ Barack Obama, sobre quem proferiu uma frase desastrosa na campanha das primárias: “Você para afro-americano é muito articulado”.
A política convida a compromissos e, meses mais tarde, o inteligente Obama viria a desafiar Joe Biden para ser o seu candidato a vice-presidente e ficar ao seu lado nos oito anos que os dois passariam na Casa Branca.
‛BROMANCE‛ NA CASA BRANCA
A relação que se estabeleceu entre os dois homens foi profunda, ultrapassando a diferença de idades e de estilo. Nasceria um verdadeiro ‘bromance’ [expressão utilizada para definir um romance entre irmãos] Biden–Obama, dois amigos e cúmplices de decisões importantes, que também se divertiam a fazer jogging na Casa Branca, e riam quando Obama comenta que Biden é o melhor massagista de ombros do mundo.
Obama tinha 46 anos, quando foi empossado como 44º Presidente dos Estados Unidos a 20 de janeiro de 2009. Joe Biden, mais vinte do que o Presidente, assumiria o papel de 47º vice-presidente depois de uma longa carreira política que começara com a sua eleição para o senado pelo estado do Delaware, em 1972.
Era o quarto senador mais antigo daquela câmara para a qual (já) fora eleito seis vezes, presidiu à Comissão de Relações Externas do Senado, opôs-se à I Guerra do Golfo, e apoiou os acordos de paz nos Balcãs.
Ao mesmo tempo que Obama inaugurava uma nova era ao ser o primeiro Presidente negro da história da América, o seu vice-presidente representava a continuidade com a ala mais tradicional e menos inovadora do Partido Democrata, e a ponte com o seu eleitorado católico . Como vice-presidente, foi responsável pela supervisão do plano de infraestruturas que procurou minimizar o impacto da recessão de 2008,e desempenhou o seu papel como mediador dos necessários entendimentos com os congressistas republicanos para fazer aprovar a legislação fiscal de 2010, que passou por um alívio de impostos.
Ao contrário do que tinha acontecido na I Guerra do Golfo em agosto de 1990, quando era senador, o vice-presidente Biden aprovou a intervenção militar na Líbia em 2011.
A MORTE DA FILHA E DO FILHO MAIS VELHO
Quando era criança, Biden lia poemas em voz alta para aprender a lidar com a gaguez, que fazia dele um alvo frequente da chacota dos rapazes da sua idade. O pai, Joseph Biden Sr., que entre outros ofícios foi vendedor de carros em segunda mão, dizia-lhe: “Não se avalia um homem pelo número de vezes que cai, mas pela rapidez com que se levanta”.
Tudo indica que o rapaz assimilou o ensinamento paterno. Um mês depois de ser eleito senador pela primeira vez pelo estado do Delaware – tornando-se o quinto senador mais jovem do país – Biden perdeu a mulher e a filha de 13 meses num acidente de viação. A carrinha Chevrolet que Neilia Biden conduzia quando ia comprar uma árvore de Natal na companhia dos três filhos foi colhida por um trator. Os dois rapazes ficaram feridos com gravidade, Joe teve vontade de desistir, mas o sentido do dever levou-o a concentrar-se no cargo e, sobretudo, na recuperação de Beau e de Hunter, passando grande parte do tempo no hospital.
A perda de Neilia e de Naomi marcaria Biden para sempre. O então vice-presidente de Barack Obama, falaria desta perda num longo discurso que fez na Universidade de Yale, a 17 de maio de 2015, muitos anos depois de ter casado com Jill Biden e de ter tido uma filha com ela: “Seis semanas depois de ter sido eleito, o meu mundo mudou para sempre. Quando estava em Washington a contratar pessoal [para o gabinete], recebi um telefonema. A minha mulher e o meus três filhos tinham ido fazer compras de Natal, foram apanhados por um trator, a minha mulher e a minha filha tinham tinham morrido, e não havia qualquer certeza de que meus filhos iriam sobreviver. Muitas pessoas passaram por coisas destas (…) Concentrei-me nos meus filhos, e encontrei a minha ‘salvação’”, contou Biden aos jovens de Yale.
O filho mais velho, Beau Biden, morreu 13 dias depois de Joe Biden ter estado com os jovens estudantes de Yale. Vítima de cancro no cérebro. A morte de Beau fez com que o velho Joe, então com 73 anos, tenha deixado cair a corrida presidencial de 2016.
Em 2017, o pai Biden publica o livro “Promise me, dad: A Year of Hope, Hardship, and Purpose” [“Promete-me, Pai”, Clube do Autor ], onde relata “detalhes vívidos por ele e pela sua família, entre a altura em que o filho mais velho, Beau, uma estrela em ascensão no Partido Democrata, foi diagnosticado com cancro no cérebro, até sua morte menos de dois anos” depois, lê-se neste artigo.
OS ‘NEGÓCIOS’ DE HUNTER NA UCRÂNIA
As ligações de Hunter Biden à Ucrânia e à China foram o grande calcanhar de Aquiles da campanha de Biden, apesar do conhecimento público de todas estas suspeitas ser anterior à campanha presidencial.
No dia 30 de outubro, quatro dias antes das eleições, o site da “Aljazeeera” recordou os 13 pontos que devemos reter sobre a investigação, em que Hunter Biden – o filho mais novo do primeiro casamento de Joe Biden e o único vivo desse matrimónio – é acusado de ser um facilitador de negócios na Ucrânia e na China, usando o seu influente apelido e o nome do pai. Um desses negócios suspeitos, envolve uma empresa ucraniana do sector energético, a Burisma, onde Hunter trabalhou na administração quando o pai era vice-presidente de Barack Obama.
No caso da China, as suspeitas recaem sobre negociações que (também) envolvem um outro membro da família,James Biden, e a empresa dos sectores energéticos e financeiro CEFC China Energy. Recorde-se que o escândalo foi divulgado quando o “New York Post” publicou uma série de emails que terão sido trocados, em 2015, entre Hunter Biden e o consultor da Burisma, Vadym Pozharskyi, onde era aventada a marcação de uma reunião entre Pozharskyi e o então vice-presidente de Obama, pai de Hunter Biden.
Ainda hoje não se sabe ao certo se houve reunião, e a agenda do vice-presidente mostra que não há registro de nenhum agendamento com Pozharskyi. O New York Post diz que os emails terão sido encontrados em abril de 2019, num laptop deixado em uma loja de reparação de computadores em Delaware”. As perguntas sobre os negócios de Hunter Biden são muitas e, um dos “ex-parceiros de negócios de Hunter Biden, Anthony Bobulinski, confirmou em uma declaração a vários meios de comunicação, incluindo a Fox News, que um dos emails publicados pelo Post que o lista como destinatário é genuíno”, lembra o site da Aljazeera.
Joe Biden garante que nunca teve qualquer conversa com Hunter sobre as suas atividades fora dos Estados Unidos e diz que nunca se encontrou com o consultor da Bursima. Trump trouxe o tema ao debate da campanha presidencial de 22 de outubro, e acusa Biden de ter exercido pressão para ajudar a Burisma quando era vice-presidente. O assunto nunca foi totalmente esclarecido e as suspeitas permanecem, já que Donald Trump usou o caso para atacar o adversário do Partido Democrata na corrida para a Casa Branca.
BEAU ‘PARTICIPOU’ NA ESCOLHA DE KAMALA
O desafio que Biden lança a Kamala Harris, filha de uma imigrante indiana e de um jamaicano, para ser a sua vice-presidente na corrida para as eleições de 2020, é uma homenagem ao filho mais velho, e uma forma de o tornar presente na campanha. Seria a própria Kamala quem recordaria o amigo Beau — que tal como ela foi procurador estadual — no seu discurso de lançamento da corrida a vice-presidenta, a 20 de agosto deste ano, apesar de a Emenda Hyde ter separado os dois destacados membros do Partido Democrata durante algum tempo.
Biden apoiou a Emenda Hyde durante décadas, Emenda esta que proíbe o financiamento federal para o aborto.
A 5 de junho de 2019, quando a corrida para as primárias no interior do Partido Democrata já tinha os motores em marcha, Kamala Harris defende a revogação desta Emenda no Twitter que se pode ler acima: “O acesso de qualquer mulher aos cuidados de saúde reprodutiva, não pode depender do dinheiro que ela tem. Devemos revogar a Emenda Hyde”.
No dia seguinte, 6 de junho de 2019, 17 meses antes das eleições presidenciais de 2020, o jornal “The New York Times” noticiava a mudança de posição de Joe Biden sobre esta polémica Emenda: “Se eu acredito que a saúde é um direito, como acredito, não posso continuar a apoiar uma Emenda que torna esse direito dependente do código postal de alguém”, disse Biden, citado pelo “The New York Times”.
O diário escrevia ainda que o ex-vice-presidente de Barack Obama, “geralmente resiste a expressar arrependimento pelos pontos de vista que defendeu no passado”. Recorde-se que uma parte significativa do eleitorado tradicional do Partido Democrata tinha uma atitude semelhante à de Biden sobre a questão do aborto.
A verdade, é que a primeira semana de junho do ano passado, marcou uma mudança de atitude de Joe Biden sobre uma questão central para a saúde de muitas mulheres.
#METOO: A ACUSAÇÃO DE TARA READE E OUTRAS SETE MULHERES
O assédio sexual esteve praticamente ausente da agenda de campanha destas eleições apesar do movimento #MeToo ter começado nos Estados Unidos.
“Embora seja uma questão que interessa à opinião pública, não foi mais abordada na campanha porque nenhum dos lados quis travar essa batalha”, disse ao Expresso a investigadora Heather Flowe, da Universidade de Birmingham. Nenhum dos candidatos quis explorar o assunto, as acusações contra Trump são várias , em relação a Biden, há oito mulheres que o acusaram de as tocar de forma imprópria e invadir seu espaço pessoal deixando-as desconfortáveis. Sete dessas mulheres disseram que o comportamento de Biden não equivale a assédio ou agressão sexual, de acordo com a “Business Insider” de 4 de maio deste ano.
A 3 de abril de 2019, Joe Biden faz um curto vídeo demarcando-se das acusações.
Quase um ano depois, a ex-assessora do Senado Tara Reade acusou Biden de a ter agredido sexualmente em 1993, quando ela trabalhava no seu gabinete no Senado. A 12 de abril último, o “The New York Times” noticiava que “Tara Reade tinha entregue um documento à polícia de Washington, D.C., dizendo ter sido vítima de agressão sexual em 1993. O relatório do incidente público, fornecido ao The Times pela Sra. Reade e a polícia, não menciona o nome do Sr. Biden”, mas Reade diz que a queixa é contra ele.
Não está provado que Biden venha a ter de esclarecer o caso Reade mas também não está provado o contrário.
“PRESIDENTE”, DISSE BIDEN À PRIMEIRA SOGRA
O homem que, tudo indica, irá ser o próximo Presidente dos Estados Unidos nasceu a 20 de novembro de 1942 e, ainda hoje mantém um certo sotaque que remete para a zona operária onde cresceu (Scranton), no nordeste da Pensilvânia. Filho de Catherine Eugenia “Jean” Finnegan e de Joseph Biden Sr., que trabalhou na manutenção de fornos industriais e foi vendedor de carros em segunda mão, está prestes a cumprir um desejo ou uma premonição que confessou numa resposta que deu à mãe de Neilia (a primeira mulher). Biden, era ainda muito jovem e solteiro, quando a sua futura primeira sogra o questionou sobre os seus objetivos objetivos profissionais. A pronta resposta de Joe foi ser “Presidente”. Talvez a velha senhora tenha ficado desconcertada com a ousadia do rapaz mas tudo indica que a premonição ou o desejo deste maratonista da política está prestes a cumprir-se. Quando tomar posse, em janeiro de 2021, terá 78 anos.
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